A dúvida manteve-se até a larica das quatro da tarde se apoderar do seu organismo, porque estaria ele a tentar enganar-se a si próprio? Era um fraco, sempre o fora, em circunstância alguma teria o perfil de mártir, não tinha outra hipótese se não falar com o editor, dizer que apesar da ideia de prostituir a sua integridade o enojasse de maneira astronómica, a oferta era demasiado única para ser recusada. O director aproveitou esse momento de derrota do seu tecelão de angústia para o informar que, a direcção do jornal achara melhor gravar a vivência do desgraçado e vende-la como suplemento do jornal.
No dia seguinte, como acordado Felipe vestiu o seu redundante uniforme vermelho, a sua desconfortável barba postiça, o seu gorro feito de poliéster do mais barato, e uns sapatões pretos de um plástico tão barato que dava a impressão (talvez verosímil) que se desintegravam a cada passo.
Quando chegou ao centro comercial designado, Felipe sentou-se num pomposo cadeirão barroco (todo ele feito de material barato), e preparou-se para a sua missão de apaziguar os desejos do fruto da carne de todos os ateus culturais que ele desprezava. Via as crianças como idiotas conformistas em potencial, pois via os adultos como idiotas conformistas. As pobres crias eram como barro nas mãos de todos aqueles relativistas todos pertencentes á seita do não causar desconforto, como poderia alguém relevante crescer num seio de esferovite social, sim porque 90% da população eram esferovite, inútil esferovite que só serve para encher e ocupar espaço, efémera esferovite que não faz falta ao grande plano, mentecapta esferovite que desconhece qualquer propósito, conformista esferovite que não estabelece qualquer objectivo. Também Felipe se sentia como esferovite, a diferença entre ele e o comum dos mortais é que, ele estava consciente da sua condição, daí a sua frustração.
A introspecção e auto-comiseração foram abruptamente interrompidas por volta das dez da manhã, hora em que uma enchente de desperdício de oxigénio em potencial cobriu toda a sua perspectiva ocular. Os homens e mulheres de amanhã surgiam aos magotes á sua frente, Felipe era subitamente um ídolo, um Deus da perfeita utopia que é a infância, todos aqueles infantes projectavam nele os seus desejos, e nem todos os desejos eram simplesmente consumistas, alguns pediam o fim da fome, outros a reconciliação dos seus progenitores, e era a ele que o pediam. Se Felipe fosse um bocado mais megalómano teria apreciado o que se sucedia, mas Felipe não era megalómano, insatisfeito sim, snob absolutamente mas megalómano não era certamente. Por isso foi com pesar que acolheu no seu colo todos aqueles ranhosos, foi com pesar que ouviu as músicas de Natal tão repetidas e iguais, foi com pesar que pensou o quão reles a sua situação era, foi com pesar que comeu a comida de plástico que lhe estava destinada para o almoço, foi com pesar que passou o resto das horas sentado a ouvir pequenos trolls.
Depois do seu pesado horário de expediente de dez horas, Felipe chegou a casa (ainda mais) deprimido, zonzo, cansado e sujo por se ter rebaixado daquela forma. Ao menos o dinheiro extra que o centro comercial lhe delegava iria permiti-lo comer rissóis de carne três a quatro vezes por semana, não era grande apreciador de rissóis mas sempre dava para desenjoar dos douradinhos e refeições “basta adicionar água” baratas que constituíam a sua alimentação.
Os dias repetiram-se, sempre iguais, barulhentos e estonteantes, talvez cada vez mais estonteantes, devido á fadiga acumulada. O benefício que esses dias iguais lhe traziam, é que tornavam a sua situação rotineira, e como tal o sentimento de rebaixamento ia diminuindo. Até que um dia a berrante rotina de Felipe sofreu um abalo menor, que viria a ter percussões maiores e afectar a sua maneira de pensar.
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